quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Uma breve crítica Wittgensteiniana à concepção mentalista de significado.



José Quitério S. Correia 
(kyttoo@live.com)
(Mestrando em Filosofia pela UFAL)

RESUMO: O presente e breve trabalho tem por intenção apontar uma crítica wittgesteiniana a um modelo de significação de linguagem referencialista mentalista. Para isso, introduz a problemática da significação própria da filosofia da linguagem, e apresenta como os filósofos Aristóteles e Thomas Hobbes tentaram resolver este problema, explicar como se dá o processo de significação. Para ambos, salvo algumas divergências não substanciais para os propósitos deste trabalho, a imagem mental tem um papel indispensável neste processo. Contudo, as falhas deste modelo de significação são mostradas posteriormente. Desta forma, após apresentar a proposta de Wittgenstein para explicar o processo de significação, que de forma simplista repousa nas regras gramaticais, o trabalho não somente negará esse papel indispensável que a tradição confere a imagem mental, bem como afirma que esta não tem nenhuma importância para a produção de significado.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia da Linguagem – Significação - Wittgenstein


Introdução

            Aristóteles afirma no primeiro livro de sua metafísica que a filosofia nasce da admiração dos homens diante das coisas desconhecidas. Desse modo, o homem filosofa unicamente em busca do saber, para que possa não mais se encontrar no estado de admiração. Pensando nesta linha, pode-se observar o processo de significação das palavras. Não é de se admirar como as pessoas pronunciam sons, desenham símbolos, fazem gestos com as mãos ou outras partes do corpo e conseguem produzir significação? Muitos filósofos pensaram acerca desta problemática e apresentaram soluções amplamente variadas ao longo da filosofia pré-contemporânea. Contudo, há uma característica peculiar nestas soluções que é o fato de se tratarem de um modelo de significação onde os termos da linguagem se referem a algo no mundo, tendo como intermediário algo que ocorre na mente. Seja lá o que for que aconteça na mente, será doravante denominado de “imagem mental”.
            Nas linhas que seguem, há a finalidade de apresentar a forma como filósofos como Aristóteles e Hobbes colocaram suas propostas, apresentando as tênues diferenças. Posteriormente se apresentará a crítica insuficiente de Frege a esse modelo de significação e uma crítica que está embasada na filosofia de Ludwig Wittgenstein.


Aristóteles

            Para Aristóteles, a forma como se dá o processo de significação da linguagem é da seguinte forma: o homem sofre afecções que são simbolizadas por sons, os quais são simbolizados pela escrita. Isso significa que, ao estar em contato com o mundo, o homem é afetado por este e esta afecção provoca o surgimento de uma imagem mental, por assim dizer. Na sequência, o homem pronúncia um som que designa essa imagem mental. Essa imagem mental, entretanto, não é outra coisa senão uma imagem de algo que existe no mundo. Poderíamos dizer que é a imagem de um objeto do mundo. Isso fica bem explícito logo no primeiro livro do seu texto denominado Da Interpretação quando Aristóteles afirma que “há os sons pronunciados que são símbolos das afecções na alma, e as coisas que se escrevem que são símbolos dos sons pronunciados”.
Algo que é de fundamental importância, não obstante, para que esse modelo de significação funcione é a garantia de que todos os homens são afetados da mesma forma. A esse respeito, Aristóteles afirma ainda em seu primeiro livro de Da Interpretação que a escrita e os sons não são os mesmos para todos, mas que as afecções são as mesmas, bem como os objetos dos quais as afecções são imagens. Isso significa que o núcleo do processo de significação está justamente no conteúdo mental, pois lá é onde ocorre a interação entre o mundo, o homem e a linguagem.


Hobbes


Mas além de Aristóteles, muitos outros filósofos tentaram resolver esta problemática. Um deles foi Thomas Hobbes. Sua proposta para resolver o problema da significação é similar a de Aristóteles, divergindo apenas em alguns detalhes.
Hobbes defendia no seu Leviatã que “o uso geral da linguagem consiste em passar nosso discurso mental para um discurso verbal, ou a cadeia de pensamentos para uma cadeia de palavras” (p. 44), o que pressupõe algo que exista de forma independente no que aqui se chamará de mundo interior, do qual as outras pessoas não têm acesso senão o próprio indivíduo. Mas, além deste, também se nomeará aqui um mundo exterior, do qual as outras pessoas têm acesso, e não somente o próprio indivíduo. Dir-se-á também que o discurso mental está para o mundo interior assim como o discurso verbal está para o mundo exterior.
Mas antes de prosseguir é necessário explicitar que esse discurso mental se origina através das sensações. Pois Hobbes diz em seu Leviatã que “não há nenhuma concepção no espírito do homem, que primeiro não tenha sido originada, total ou parcialmente, nos órgãos dos sentidos” (p. 31). Esse processo ocorre semelhante a como defendia Aristóteles. Os objetos do mundo afetam o homem de modo a criar uma imagem mental, que Hobbes preferia chamar de “ilusão originária”, conforme a citação a seguir: “em todos os casos a sensação nada mais é do que a ilusão originária, causada [...] pela pressão, isto é, pelo movimento das coisas exteriores nos nossos olhos, ouvidos e outros órgãos a isso determinados” (p. 32).


Crítica

Em suma: tanto para Aristóteles quanto para Hobbes, a imagem mental tem um papel indispensável no processo de significação, uma vez que age enquanto mediadora entre os objetos do mundo e a linguagem. Entretanto, em Aristóteles, o que sustenta a afirmação de que as afecções são todas idênticas em todos os homens não passa de uma ancoragem metafísica. Mas o problema mesmo é que isso é uma afirmação inverificável. Não se pode saber se a imagem mental é mesma para todos os homens, assim como não se pode afirmar que não é a mesma. O enunciado é inverificável, além de não apresentar critérios de correção. Um aristotélico, entretanto, ainda poderia alegar que uma prova de que realmente a imagem mental é igual em todos os casos é que as pessoas conseguem se entender, produzir significado. Mas isso seria uma petição de princípio, pois se supõe o que se quer provar. Supõe-se que a imagem mental é a causa da significação porque há a significação e sem a imagem mental não haveria significação.
Quando se trata de Hobbes, contudo, o que assegura a compreensão é o que comumente em filosofia da linguagem se denomina “mentalês”, que nada mais é do que o discurso mental, que existe independente do discurso verbal e do qual este é apenas mera tradução. O problema com essa proposta de significação é o mesmo: não há como verificar se este “mentalês” é o mesmo em todas as pessoas. Trata-se de algo também inverificável e isso gera problemas quando se trata de filosofia.
Em suma, parece que este modelo de significação referencialista mentalista é incapaz de satisfazer a admiração que o homem sente em responder a questão: “como é possível o significado?” Pelo que até mesmo Frege já apontava em seu artigo intitulado Sobre o Sentido e a Referência (p. 135) que a imagem mental, ou a idéia, é subjetiva e, por isso, a descartava quando o objetivo era resolver a presente querela do significado. Frege apostava no que ele mesmo denominou de “sentido”, o qual era intersubjetivo e tinha condições de apontar para o objeto, a “referência”. Entretanto, o matemático-lógico ainda continuava defendo um modelo de linguagem referencialista. Por isso, a crítica a seguir não será uma crítica fregeana, mas wittgensteiniana. Visto que o maduro Wittgenstein consegue romper com esse modelo de significação referencialista completamente, não somente o modelo referencialista mentalista.
 Wittgenstein, em sua fase madura, entende que os critérios para explicar o que é a linguagem e como ela funciona são públicos. Portanto, não recorre a qualquer espécie de imagem mental para explicar a produção de significado. Isso não significa, entretanto que Wittgenstein negasse que tais imagens existissem, mas tão somente afirmava que não são elas as responsáveis pela significação da linguagem. A linguagem seria uma habilidade desenvolvida através do treino – que Wittgenstein explica através do conceito de seguir uma regra – e que é correspondente a uma multiplicidade de jogos de linguagem inseridos em contextos culturais, as formas de vida. Nessas condições, conforme anota na primeira parte das Investigações Filosóficas, as palavras adquirem significado quando colocadas em uso (I §43). Isso significa dizer que são as regras gramaticais que fazem com que o discurso adquira significação. A linguagem funciona como um conjunto de diversos jogos, onde a habilidade adquirida de jogar em cada um destes jogos é que permite o uso eficiente da linguagem. Um homem aprende a falar um idioma de forma semelhante a como aprende a jogar xadrez, por exemplo, aprendendo as regras do respectivo jogo.
Mas, para que não se diga que Wittgenstein desconsiderou as imagens mentais, deve-se pensar no seguinte: i) a imagem mental de Aristóteles é inverificável e defendê-la implica em cair em petição de princípio, conforme já demonstrado; e ii) se o “mentalês”, discurso mental, de Hobbes é uma espécie de  linguagem privada e padrão para a linguagem pública, o que é que ele tem como padrão? Em outras palavras, se a linguagem pública é tradução do “mentalês”, este também não seria tradução de outro idioma, que por sua vez seria tradução de outro a assim infinitamente? Em filosofia não se admite um regresso ao infinito. Então não se trata de simplesmente ignorar a imagem mental, trata-se de recusá-la argumentativamente.
Outra forma de atacar as sensações privadas e imagens mentais privadas como condicionantes para o significado pode ser encontrado também na primeira parte das Investigações Filosóficas quando Wittgenstein afirma que as palavras que designam sensações estão ligadas às manifestações naturais ( I, §256), do que segue que os critérios não são privados. Além disso, tem o famoso exemplo do “besouro”, que consiste no seguinte: suponha que cada pessoa tivesse uma caixa com algo dentro e que as outras pessoas não pudessem ver o que tem na caixa das outras; ainda que essa coisa pudesse estar em constante mudança, isso não iria interferir no processo de significação se as pessoas tivessem um uso para a palavra “besouro”, na verdade ainda que não houvesse nada na caixa, haveria significação; do que se segue que a coisa, o objeto, é irrelevante no processo de significação (I § 293). O “besouro” seria a imagem mental numa crítica a Aristóteles e a Hobbes e a caixa seria o aparato mental das pessoas. O objetivo é mostrar que não importa o que seja a imagem mental, o uso das palavras seguindo jogos regrados gramaticalmente permite a produção de significado.

Considerações finais
            Conclui-se disso que o modelo de significação referencialista mentalista, seja o de Aristóteles ou de Hobbes é insuficiente porque: no primeiro caso, a imagem mental não pode ser verificada e insistir nisto acarretaria em cair em petição de princípio; e no segundo caso, porque a defesa do “mentalês” conduz a uma queda ao regresso ao infinito, além da falta de critérios de correção. Nâo obstante, a crítica de Frege é insuficiente, pois ele ainda continua refém de um modelo de significação referencialista, ainda que sem imagens mentais com papéis indispensáveis. Mas é com Wittgenstein que a querela encontra solução, dando cabo ao processo de admiração e mostrando a deficiência do modelo de significação referencialista, além de argumentar com sucesso contra a ideia de que as imagens mentais são necessárias e indispensáveis no processo de significação.

Referências
ARISTÓTELES. Da Interpretação. Tradução de José Veríssimo Teixeira da Mata. São Paulo: EDITORA UNESP.
FRANÇOIS, S. Wittgenstein. Trad. de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. (Figuras do Saber).
FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referência. In: Frege, G. (1978). Lógica e Filosofia da Linguagem. Seleção, introdução, tradução e notas de P. Alcoforado. – 2. Ed. Amp. E ver. –  São Paulo: EDUSP, 2009. (pp. 129 – 158).
HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: EDITORA NOVA CULTURAL LTDA, 1999. (Coleção Pensadores)
MILLER, A. Filosofia da Linguagem. Tradução de Evandro Luis Gomes, Christian Marcel Amorim e Perret Gentil Dit Maillard. – 2. ed. – São Paulo: PAULUS, 2010. – (Coleção Filosofia)
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: EDITORA NOVA CULTURAL LTDA, 1999. (Coleção os pensadores)